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sexta-feira, 13 de março de 2015

Os Miseráveis ou o Canto da Misericórdia.





in memoriam de meu irmão

A adaptação do musical Os Miseráveis para o cinema é dos filmes mais belos e comoventes que tenho visto nos últimos anos. Embora não tenha ficado muito convencido da primeira vez que o vi, voltei a vê-lo várias vezes, por um conjunto variado de razões, até acabar por ficar fascinado. De cada vez que o vejo, ou oiço a banda sonora, acabo sempre por ficar comovido com a sua beleza.

Para mim todo o filme roda à volta de duas personagens. De um lado o inspector Javert, o agente da justiça, do outro Jean Valjean, servo da misericórdia. 

O conflito entre os dois começa logo na primeira cena. Javert é guarda dos prisioneiros que fazem trabalhos forçados em Toulon. Valjean é o prisioneiro 24601, que ao fim de 19 anos, cinco anos por roubar um pão para alimentar os sobrinhos, os outros por tentar fugir, sai em liberdade condicional, com a obrigação de se apresentar regularmente às autoridades até ao fim da vida.

Jean Valjean sai de Toulon destruído, totalmente amargurado, furioso com todo o mundo pela injustiça de que foi alvo. E a liberdade só o esmaga mais. Rejeitado em todo o lado por ser um condenado, perseguido e acossado, acaba por se deitar para dormir à porta de uma casa próxima de um cemitério.

É então que o bispo da cidade o vê e o convida a entrar, para cear e dormir. Durante a noite Valjean foge, levando consigo os talheres de prata do bispo. No dia seguinte é apanhado pela guarda que o leva a casa do bispo.

E então dá-se o momento que transforma a vida de Valjean. O bispo, em vez de o acusar, repreende o antigo condenado por se ter esquecido de levar os castiçais de prata, último bem precioso que possuía, e dispensa a guarda. Depois de a guarda sair, o bispo diz a Valjean: Lembra-te disto meu irmão, vê nisto um desígnio superior. Deves usar esta prata preciosa para te tornares um homem honesto. Pelo testemunho dos mártires, pela Paixão e pelo Sangue, Deus ergueu-te da escuridão: eu comprei a tua alma para Deus.

A partir desse momento, Jean Valjean muda de nome, escapa à justiça e começa uma nova vida, toda alicerçada neste encontro. Relembrar esta cena traz-me à mente as palavras do Papa Francisco na audiência com Comunhão e Libertação: O lugar privilegiado do encontro é a carícia da misericórdia de Jesus Cristo para com o meu pecado. E, por isso, algumas vezes me ouvistes dizer que o lugar privilegiado do encontro com Jesus Cristo é o meu pecado. É graças a este abraço de misericórdia que dá vontade de responder e de mudar, e que pode surgir uma vida diferente. A moral cristã não é o esforço titânico, voluntarista, de quem decide ser coerente e o consegue, uma espécie de desafio solitário perante o mundo. Não. Esta não é a moral cristã, é outra coisa. A moral cristã é resposta, é a resposta comovida frente a uma misericórdia surpreendente, imprevisível, até mesmo “injusta” segundo os critérios humanos, de Alguém que me conhece, conhece as minhas traições e me quer bem ainda assim, me estima, me abraça, me chama de novo, espera em mim, espera de mim. A moral cristã não é nunca cair, mas levantar-se sempre, graças à sua mão que nos segura.

E assim é com Jean Valjean: ferido, trai a única pessoa que lhe estende a mão. Contudo, a misericórdia “injusta” daquele bispo leva-o à conversão. Todo o resto da sua vida será dedicada à misericórdia.

Do outro lado temos o inspector Javert. Para ele a justiça é tudo. Não existe maior virtude do que ser justo. O seu ódio a Valjean, que o leva a persegui-lo, ano após ano, advém do facto de este ter cometido o que para ele é o maior crime: fugir à justiça.

E este é o grande drama de Javert: ele é um homem bom, mas para quem nada existe para lá da justiça. Aliás, podemos entrever a bondade do polícia na cena em que ele contempla os corpos dos revolucionários mortos e vê entre eles o pequeno Gavroche, que antes o tinha denunciado à polícia e que quase levou à sua morte. Nesse momento Javert tira uma medalha do seu peito e coloca-a no cadáver da criança, injustamente morta.

O que ele não é capaz de aceitar é a injustiça da misericórdia. Para ele é claro: quem errou tem que pagar o seu preço. O perdão totalmente imerecido, como aquele de que foi alvo Valjean, parece-lhe o cúmulo da iniquidade. É gozar da justiça. Por isso quando o seu inimigo, que ele perseguiu toda a vida implacavelmente, o tem preso e decide liberta-lo em vez de o matar, ele quase enlouquece. E quando finalmente tem Valjean à sua disposição e em vez de o prender o deixa fugir, enlouquece de vez e suicida-se. 

E aqui vemos a diferença entre a justiça e a misericórdia. A justiça é uma virtude humana. É uma medida humana: cada um tem aquilo que merece. Mas a misericórdia é uma virtude divina: perdoar sem qualquer medida, sem qualquer cálculo ou conta. Por isso a justiça, para ser verdadeiramente justa, tem que ser temperada pela misericórdia. Se assim não for acaba por se tornar medida última de todas as coisas. Acaba por ser tornar iniqua e destrutiva.

A justiça, em última instância, é afirmação do homem como senhor de si mesmo. Eu fiz isto ou aquilo e agora pago. Mas a misericórdia é a medida de Deus. É o coração que grita: se mataste, se roubaste, essas coisas não aconteceram, só Ele é( in Miguel Mañara). Por isso negar a misericórdia é negar Deus, é trocar a Paternidade Divina pela independência, ou seja pelo nada e pelo desespero.

Por isso Javert diz ao suicidar-se: as estrelas são negras e frias, enquanto eu olho para o vazio de um mundo que eu não consigo segurar. Eu irei escapar-me agora do mundo, do mundo de Jean Valjean. Não há nenhum lugar para onde eu possa ir, não há nenhum caminho para seguir.

Ao contrário, Valjean morre sossegado, no Mosteiro onde viveu com a sua filha adoptiva, com palavras de beleza e alegria: Deus nas alturas ouve a minha oração. Leva-me agora, para o Teu cuidado. Onde estiveres, deixa-me estar. Leva-me agora, leva-me lá, traz-me para casa.

Existe outra razão, para lá da belíssima história para que este filme me emocione tanto. Não consigo ver este filme, ou sequer ouvir algumas das suas músicas, sem me lembrar do meu irmão Luís, que o Senhor chamou a Si no ano passado.

As razões para esta memória são várias. Para começar o DVD do filme que eu tenho herdei-o do meu irmão. Para além disso, também ele gostava muito d’Os Miseráveis. De tal maneira que chegou a encenar algumas cenas do filme num concurso de talentos do Colégio de São Tomás.

Mas a principal razão para me recordar do meu irmão é que também ele procurou sempre a misericórdia. Lembro-me de tantas vezes que ele foi tratado de maneira menos justa ou menos simpática e de que como ele, muitas vezes perante a minha fúria, preferia quase sempre não ligar, passar por cima.

Lembro-me também da sua constante disponibilidade para ajudar. Alguns destes seus gesto foram públicos: os concertos de natal, os coros, os teatros, o trabalho com os Cavaleiros de Comunhão e Libertação. Mas muitos mais foram os gestos privados. Nunca se esquecia de ninguém. Depois da sua morte foram várias as pessoas, especialmente pessoas que regra geral são esquecidas pelos outros, que me contaram a companhia que o Luís lhe tinha feito. Testemunharam pequenos gestos: uma mensagem que ele tinha mandado num momento de tristeza, a companhia ao almoço, um presente que ele tinha dado.

A verdade é que esta maneira de viver, entregue à misericórdia, não será provavelmente a melhor para triunfar no mundo. Engolir as injustiças e dar tudo sem nada esperar em troca não é propriamente a receita para uma vida sossegada. Mas é a receita para uma vida feliz, como aquela que o meu irmão viveu. Sobretudo, parece ser o caminho para chegar à Glória do Senhor.

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