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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Morte a Pedido: Duas Questões - Público 31/08/2016




1. Tenho mantido neste jornal um acesso debate com Laura Ferreira dos Santos e com João Ribeiro Santos sobre a questão da morte a pedido. Infelizmente temos perdido muito espaço em questões laterais em vez de focar-mos o debate no essencial. Peço por isso desculpa, mas não farei uma introdução descrevendo tudo o que foi dito até aqui. Sobretudo, porque me vejo, mais uma vez, obrigado a insistir nos pontos que constituem o cerne da petição e dos meus dois artigos anteriores e para os quais ainda não recebi resposta.

2. Diz Laura Ferreira dos Santos no seu último artigo que " Por acaso terá ouvido algum de nós dizer que o Estado devia determinar a dignidade ou não de uma vida humana?". De facto, não ouvi ou li tal afirmação da parte de nenhum dos defensores da eutanásia. Contudo, é a consequência lógica de se defender a legalização do homicídio a pedido da vítima e do suicídio assistido.

3. Digo isto porque não acredito que os peticionários do Direito a Morrer com Dignidade defendam a simples liberalização do homicídio a pedido da vítima e do suicídio assistido. Não acredito que defendem que o Estado tem o dever de autorizar e eventualmente executar a morte de qualquer pessoa que o peça. Duvido seriamente que defendam que deixe de ser crime matar alguém ou ajuda-la a cometer suicídio desde que se faça prova que a vítima o pediu.

 4. Acredito que aquilo que defendem é que em certas circunstâncias (quando existe grande sofrimento e um pedido expresso) possa e deva o Estado autorizar a que se ponha fim à vida de uma pessoa.

5. Ora, isto significa duas coisas: primeiro que é o Estado que define, através da legislação, quem pode recorrer ao homicídio a pedido da vítima e ao suicídio assistido. Segundo que será o Estado, através do mecanismo que for criado para fiscalizar a aplicação desta lei, a decidir em que casos concretos pode e deve esta ser aplicada.

6. É evidente que o pedido será da pessoa que quer morrer. E que esta pode sempre mudar de ideias. Contudo, quem decide se de facto aquela pessoa pode morrer é o Estado. De facto não será suficiente a vontade expressa de morrer, será sempre necessário:

a) que se preencham os requisitos legais;
b) o consentimento do Estado.

7. Existe ainda outro ponto essencial da intervenção do Estado: tendo autorizado o homicídio a pedido da vítima ou o suicídio assistido, caberá naturalmente ao Estado executa-lo, através de profissionais de saúde devidamente autorizados e capacitados. Não está em discussão uma simples autorização administrativa do suicídio ou do homicídio. O debate não é sobre se o Estado pode ou não permitir que um cidadão se mate. Mas sim, se o Estado pode, ou pior se está obrigado, a conceder os meios para por termo à vida de um ser humano.

8. Por tudo isto é que continuamos a insistir que o centro desta discussão não é a autonomia pessoal. Não estamos a discutir a licitude do suicídio. Já todos sabemos que a Laura Ferreira dos Santos e o João Ribeiro Santos consideram que cada um tem direito a por fim à sua vida. Mas aquilo que realmente interessa é saber se consideram que:

a) O Estado pode decidir (dentro dos parâmetros acima descritos) que vidas têm ou não dignidade?

b) O Estado deve promover a morte dos cidadãos que queiram por termo à sua vida?

9. Estas são as duas questões que temos colocado desde o principio do debate. Estas são as duas questões para as quais ainda não obtivemos resposta.


José Maria Seabra Duque
Subscritor da Petição Toda a Vida Tem Dignidade
Jurista

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Proibir o Burquini: Um Cobardia e uma Tirania




Vi ontem a noticia de que a policia de Nice obrigou uma mulher a despir parte da sua roupa na praia. Isto porque supostamente estaria de burquini (de facto não estava) o que é proibido naquela cidade.

Antes de mais, não posso deixar de me espantar que a mesma polícia que deixou um camião cheio de armas entrar numa zona de trânsito proibido onde estavam dezenas de milhares de pessoas porque o condutor afirmou que ia vender gelados, consiga agora detectar uma mulher demasiado vestida na praia. Estamos diante de um enorme evolução na luta contra o terrorismo...

Tenho ouvido duas justificações para esta medida idiota: a primeira é a defesa da liberdade da mulher. Segundo os adeptos desta teoria, as mulheres que usam burquini só o fazem porque são obrigadas pelos maridos, pelos irmão, pelos filhos. Por isso decidiu a autoridade que em vez de estas mulheres serem oprimidas pelos seus familiares homens, devem-no ser pelo Estado. A solução não é, como talvez alguma pessoa mais simplista possa pensar, investigar os casos de abuso sobre as mulheres. A solução passa por obrigar todas as mulheres, as que o querem e as que não o querem, a não usar tal peça de vestuário. Assim, através de uma norma que proíbe a mulher de se vestir como entende, a república tenciona tornar as mulheres livres. Quer queiram quer não queiram!

Claro que isto em nada ajudará as mulheres que são obrigadas pelos seus parentes masculinos a taparem-se. Como é evidente um homem que acha que pode obrigar a mulher, ou a irmã, ou a mãe a vestir certa peça de roupa, não vai mudar de ideias só porque passou a ser proibido. A única consequência para essas mulheres oprimidas é que em vez de irem à praia de burquini não vão à praia de todo!

A segunda "desculpa" para esta norma é o respeito pelo secularismo, razão pela qual uma mulher não pode andar com um símbolo religioso vestido. Antes de mais convém esclarecer que o burquini não é um símbolo religioso. É um fato de banho que tapa todo o corpo excepto a cara, razão pela qual pode ser usada pelas mulheres muçulmanas. Contudo, não é um exclusivo daquelas que acreditam no Islão: também é usado por mulheres com problemas de pele ou que simplesmente não se querem expor em demasia aos raios do sol. Não posso por isso deixar de me perguntar se a proibição de usar burquini é só para as muçulmanas ou é para todas as mulheres? Se a polícia quiser obrigar uma mulher a despir o burquini e esta responder que tem uma doença de pele é expulsa da praia? Ou pode apresentar um atestado médico? Se disser que não é muçulmana, já não há problema?

Porque aparentemente o único problema, para os que defendem esta argumentação, é que não se pode andar com vestes religiosas em público. Ou melhor, com vestes religiosas islâmicas. Porque, tanto quanto foi noticiado, ninguém proibiu o uso dos hábitos religiosos, ou das vestes talares, ou dos turbantes dos sikh, ou do talit e do quipá judaico, ou da túnica budista. Apenas do burquini.

Ou seja, o problema é mesmo com o Islão. Isto porque existem grupos terroristas islâmicos que têm espalhado o terror pelo Europa. Por isso, por alguma centenas de terroristas, que representam alguns milhares de islâmicos, a França declara que a fé de mil milhões de pessoas em todo o mundo não é compatível com os valores da república. A fé do polícia que morreu no ataque ao Charlie Hebdo, a fé do merceeiro que escondeu judeus na sua loja durante um ataque terrorista, a fé dos professores universitários do Iraque mortos por defenderem a liberdade dos cristãos, a fé daquele homem que morreu com os mártires coptas junto ao mar, a fé dos reis de Marrocos e da Jordânia que publicamente condenaram e atacaram o Estado Islâmico, a fé dos frequentadores da Mesquita de Saint-Etienne-du-Rouvray que recusaram o enterro dos assassinos do padre Hamel. A fé de milhões de pessoas que nada tem a ver com o terrorismo ou com o Estado Islâmico.

Cheguei a ler num jornal português a opinião de um iluminado, que já vi repetida em outros lados (as frases curtas e idiotas usadas para explicar problemas complexos têm cada vez mais tendência a fazer sucesso), onde comparava o uso do burquini ao uso da suástica. Para este respeitado colunista o islamismo está de tal maneira ligado ao terrorismo que usar publicamente os seus símbolos é o mesmo que apoiar o Estado Islâmico. Como usar a suástica, mesmo que seja por outras razões, é o mesmo que apoiar o nazismo. Eu percebo que para quem tem que ocupar uma coluna de um jornal sem ter a capacidade para produzir qualquer pensamento inteligente, esta comparação tenha parecido muito boa. O problema é que o Estado Islâmico tem símbolos próprios, nenhum dos quais é o burquini! A comparação certa é da suástica com a bandeira do EI. Ou então comparar a proibição do burquini a uma proibição da bandeira alemã por causa do nazismo. Nenhuma das duas é abonatória à posição do escriba em questão.

Esta proibição não só não terá qualquer efeito na luta contra o terrorismo, como se arrisca a piorar a situação. Pensemos na mulher humilhada na praia à frente dos seus filhos, com a policia a manda-la despir, enquanto pessoas na praia berravam contra ela e a sua fé. Pensemos em todos os muçulmanos normais, que nada têm contra o ocidente. Que vêm nas noticias que uma mulher da sua fé foi humilhada por nenhuma outra razão do que de se vestir de acordo com aquilo em que acredita. Obrigada a despir-se porque a sua roupa é contra o secularismo e os costumes, como disse a polícia. Quantos desses é que terão passado a odiar a França? Em quantos terá crescido o ódio à Europa? Quantos viram confirmado as teorias dos radicais de que o Ocidente é contra o Islão? Esta medida só irá aumentar o ódio e a incompreensão numa situação onde eles já são reis e senhores.

Esta decisão é cobarde e é tirânica.

É cobarde porque a França faz-se forte com os fracos, mas depois é fraca com os fortes. Por um lado persegue uma parte desprotegida da população, proibindo a de expressar livremente a sua fé. Com que objectivo? Satisfazer a vontade da populaça que ameaça votar na Frente Popular. De facto, esta proibição só serve para propósitos eleitoralistas. Esta proibição utiliza as armas do clã Le Pen (a demagogia, o alarmismo, o discurso nacionalista) não para combater ou prevenir o terrorismo, mas sim para ganhos políticos.

Ao mesmo tempo, o Estado Islâmico continua a ter um território, um exército, continua a perseguir e a executar inocentes. Os seus apoiantes continuam a pregar nas mesquitas em França. Os seus sites continuam a recrutar jovens na Europa. Mas contra eles, contra os verdadeiros terroristas, a França nada faz a não ser belos discursos. Forte contra os fracos, fraca contra os fortes.

É tirânica, porque ataca um direito fundamental. O direito a expressar a sua Fé, o direito a vestir-se de acordo com aquilo em que se acredita, são direitos inerentes à dignidade humana não são concedidos pelo Estado, mas devem ser por ele reconhecidos e defendidos.

Os direitos fundamentais não são absolutos. Podem ser limitados quando estão em causa outros direitos de igual ou superior valor. Mas não podem ser limitados ou retirados só para não ofender a sensibilidade pública. Um Estado que viola os direitos fundamentais dos cidadãos, que se acha dono desses direitos fundamentais, que os deixa ao capricho de sensibilidades políticas, é um Estado tirânico.

Por isso a proibição do burquini não é um ataque apenas ao Islão. É um ataque ao Estado de Direito democrático. Por isso deve-nos preocupar a todos. Porque se concedemos aos Estado o poder para decidir hoje o que uma mulher islâmica pode ou não usar, arriscamo-nos a que amanhã esse mesmo Estado decida o que cada um de nós pode vestir, que ideias pode exprimir, que Fé pode professar.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Eutanásia: Um Debate Que Exige Seriedade - Público, 13/08/2016




Foi publicado no Público de dia 25 de Julho um artigo de João Ribeiro Santos, um dos promotores do manifesto Direito a Morrer com Dignidade, em resposta ao meu artigo Proteger a Inviolabilidade da Vida Humana: Um Dever De Cidadania publicado no dia 14 de Julho no mesmo jornal. Relembro que o meu artigo vinha refutar as afirmações de Laura Ferreira dos Santos sobre a petição Toda a Vida Tem Dignidade.



Acusa-me João Ribeiro Santos de vários malfeitorias, incluindo de deixar muito a desejar no que toca à boa-educação e à verdade dos factos. Ora, podíamos continuar nesta "polémica" com artigos indignados sobre a boa ou má educação da parte contrária. Eu escrevia agora um artigo a refutar as acusações do João Ribeiro Santos, alguém do outro lado escrevia o artigo a indignar-se com o meu artigo e assim por diante.



Contudo, parece-me que este caminho seria pouco proveitoso para o debate sobre o homicídio a pedido da vítima. Tenciono por isso limitar-me a expor as razões pelas quais sou contra a legalização da eutanásia.



No ordenamento jurídico português a Vida Humana merece protecção objectiva. O nº1 do artigo 24º da Constituição afirma que a "A vida humana é inviolável". Quer isto dizer que a protecção jurídica concedida ao Ser Humano não depende nem pode ser diminuída por nenhuma circunstância. De facto, só é possível violar o direito a vida nos casos em que está em causa a vida de outrem.



Este preceito constitucional encontra aplicação prática no Código Penal de 1995. Mais concretamente no capitulo I, do título I da parte especial do dito código, que tem como epigrafe "Dos crimes contra a vida" entre os quais estão o homicídio a pedido da vítima (artigo 134º) e o incitamento e ajuda ao suicídio (artigo 135º).



Considera o legislador que, quem mata outra pessoa, ainda que por pedido sério, instante e expresso desta, comete um crime. E ainda que quem ajudar outra pessoa a suicidar-se também comete um crime.



Ora, o que o Direito a Morrer com Dignidade deseja é que este dois artigos sejam alterados, de maneira a que seja legal ao Estado (através de profissionais de saúde autorizados) efectuar estes actos.



Por isso é que afirmamos que o que se discute na eutanásia não é a autonomia pessoal, não é um suposto direito ao suicídio. Mas sim se é possível ao Estado matar ou contribuir para a morte de um cidadão.



Não nos parece que a vontade do próprio seja suficiente para conceder ao Estado tal poder. Sobretudo porque falamos de pessoas que estão numa situação de grande fragilidade e que o Estado tem o dever de defender, não de executar.



Conceder tal poder ao Estado, para além do mal que seria por si mesmo, significa abrir uma brecha enorme na protecção da Vida Humana. Relembramos que só no século XX é que foi negado ao Estado poder de vida sobre os cidadão. Seria uma enorme retrocesso voltar atrás neste caminho de progresso que levou séculos a alcançar.



É este o debate que é preciso fazer. Percebo que a indignação e o discurso sentimental sobre a autonomia pessoal vs. a opressão religiosa seja mais apelativo. Porém o povo português merece que esta questão seja tratada com seriedade. É para este debate que convido o João Ribeiro Santos assim como todos os que apoiam o Direito a Morrer Com Dignidade.



P.S.: Não sendo o assunto do artigo, não posso deixar de dizer que é má argumentação deturpar uma figura de estilo usada pelo "adversário". Dizer que alguém é católico não é uma acusação. Afirmar que alguém, por ser católico, quer impor a sua visão do mundo aos outros é. Facto que penso que João Ribeiro dos Santos terá percebido.



José Maria Seabra Duque

Subscritor da Petição Toda a Vida Tem Dignidade

Jurista